Os jogos indies conquistam o mercado brasileiro
Velho e fraco, Lampião vai em busca de um segredo do passado,
guardado numa butija que havia enterrado. Ao encontrá-la, porém, uma
maldição jogada no objeto o transporta para outro mundo, o chamado
Sertão Profundo. Lá, a alma de todos os homens que assassinou aparecem
diante dele. Ao longo de seu caminho, Lampião terá de enfrentar
criaturas com o uso de uma inusitada arma: música folclórica, tocada por
ele mesmo. O Sertão Profundo, portanto, se trata de um tipo de
purgatório, pelo qual Lampião deve passar para se redimir das maldades
que cometeu.
Parece história de revistinha de literatura de cordel, daquelas que
vendem em praias do Nordeste. Contudo, a aventura se trata, na real, do
cenário de um jogo eletrônico, o brasileirÃssimo Lampião Verde: A
Maldição da Butija. Há uma década, um jogo independente, ou indie
(alcunha dada àqueles que não são desenvolvidos em uma grande
produtora), de alto nÃvel técnico, desenvolvido no Brasil e com cenário
tipicamente tupiniquim, seria praticamente inviável. Isso porque, os
gastos com a produção de um game de qualidade eram elevados – o
best-seller Call of Duty: Finest Hour (de 2004), por exemplo, custou 8,5
milhões de dólares – e os softwares necessários para tal eram de
difÃcil acesso. Passada mais de uma década, contudo, a situação mudou
radicalmente, com o barateamento das tecnologias necessárias para
produzir um game e o ampliamento do acesso às habilidades profissionais
requisitadas para tal. Resultado: neste ano, os indies foram o grande
destaque da última feira da Brasil Game Show (a BGS), maior do gênero na
América Latina. Nela, 108 estandes apresentavam as produções
independentes, na maioria, brasileiras. Número bem diferente do de 2014,
quando só haviam sete indies no evento.
O que mudou em tão pouco tempo? Agora, os programadores dos jogos
eletrônicos têm acesso a softwares gratuitos para criar suas aventuras. A
exemplo do conhecido programa Unreal Development Kit, requisitado tanto
por grandes estúdios do gênero, quanto pelos iniciantes. Outra
transformação foi o advento dos sites de financiamento coletivo, pelos
quais os independentes conseguem levantar dinheiro, por meio de doações
ou pela compra antecipada feita por jogadores, para alavancar seus
trabalhos. Foi assim com Lampião Verde, que arrecadou pouco mais de 30
mil reais por um desse sites. Por fim, enquanto há uma década havia
praticamente dois tipos de plataformas (usualmente, de preço elevado)
para os games, os consoles de videogame e os computadores, hoje é
possÃvel jogar em diversos dispositivos, cotidianos e mais em conta. A
exemplo dos populares smartphones e tablets. Até em redes sociais, como o
Facebook, há uma proliferação de jogos indies.
Na BGS, algumas produções se destacavam pela qualidade, comparável Ã
dos jogos de mercados mais tradicionais, como o americano e o japonês.
Caso de Sonho de Jequi, game brasileiro que chegou a ganhar um prêmio da
Microsoft neste ano. Na história, a produtora, Tower Up Studios, com
sede em Belo Horizonte, procurou abordar uma problemática tipicamente
brasileira: a seca. Na aventura, embalada por canções tÃpicas da cultura
nacional, o jogador tem como missão coletar água para sua famÃlia.
Já os paulistanos da Monster Burp, por sua vez, foram à BGS com o
objetivo de lançar o tÃtulo Marco Zero. Nele, exibe-se uma São Paulo
dominada por zumbis. A meta da empresa é tentar vender o projeto para
alguma grande empresa do ramo, a exemplo da Microsoft, dona dos consoles
da linha Xbox, e a Sony, do Playstation.
“A possibilidade de criar esses produtos aqui ainda abre portas para
que possamos explorar a nossa cultura, inserindo aspectos regionais nos
games e, assim, destacando a identidade brasileira”, pontuou o designer
de jogos eletrônicos Breno Carvalho, coordenador do curso da área na
Universidade Católica de Pernambuco. “Pouco a pouco perderemos nosso
complexo de vira-lata, tÃpico dos meus conterrâneos, e passaremos a
valorizar o que fazemos, em vez de só a produção internacional”,
concluiu.
Isso se reflete, diretamente, no conteúdo dos jogos. Deixam de
existir tão-somente os tÃtulos baseados em temáticas americanas, a
exemplo dos de tiro como os da saga Call of Duty, ou asiáticas, como os
da clássica linha Final Fantasy, de fantasia e RPG. Isso ocorria por um
motivo simples: as maiores produtoras de videogame são sediadas nessas
regiões. Com a chegada dos indies, entretanto, agora há espaço para
aventuras como a de Lampião, que refletem a cultura regional.
Presidente da feira BGS, Marcelo Tavares acredita que o advento dos
independentes ainda tem potencial para movimentar o mercado: “Como esses
lançamentos se apoiam em temáticas locais, acabam por se aproximar mais
da vida do jogador, atraindo um novo tipo de público, que busca
alternativas à mesmice”. E os brasileiros compõem um público
potencialmente grande, visto que mais de metade da população com acesso Ã
internet é também consumidora de videogames. Em outras palavras, um
contingente de 70 milhões de pessoas que, só em 2016, deve movimentar um
mercado de 1,3 bilhão de dólares.
Aos novatos na área, os indies parecem representar uma grande mudança
de paradigma para essa indústria, até então dominada por grandes
players, a exemplo das gigantes Nintendo e Microsoft. Na verdade, porém,
trata-se é de uma volta à s raÃzes. Quando começaram a surgir os
primeiros games comerciais, na década de 1970, eles eram todos de
produção independente. A exemplo do clássico Pong, um dos primeiros do
tipo, no qual os jogadores disputam partidas similares às de ping pong. O
sucesso de Pong foi a base para a criação da empresa Atari, tida como a
primeira grande representante desse mercado. A partir de meados dos
anos 80, contudo, o negócio passou a ser conquistado por grandes
companhias. A Nintendo, do Super Mario Bros., por exemplo, chegou a
reter 90% do mercado.
Chegados os anos de 2010, o cenário voltou a se inverter. Desta vez, é
a Nintendo que passa por dificuldades financeiras, tentando se adaptar
às novas plataformas, em especial aos smartphones e tablets. Enquanto
isso, os indies retornam com força total.
Fonte: ariquemesonline.com.br